Vigiar e punir... a vítima (ou Foucault nos trópicos)
- Maria Célia Ribeiro

- 17 de jun. de 2024
- 4 min de leitura

Num dia é vítima, no outro também. Assim poderíamos adaptar – ou subverter, como prefiro – o famoso ditado sobre caça e caçador para o contexto brasileiro neste momento. Tenho acompanhado, com horror e pasmo, as discussões sobre as pretendidas mudanças na lei sobre o aborto.
Se vivêssemos em um país em que o procedimento fosse liberado a todas as mulheres, seria compreensível que alguns se preocupassem com a lei. Contudo, estamos longe, muito longe disso. Aqui há regras, aliás, bastante rigorosas. Não basta uma mulher não querer ser mãe; é preciso que ela seja vítima: de uma doença grave, de um estupro ou, ainda, da doença grave do próprio filho.
Há tanta displicência por parte dos legisladores, tanto descaso que isso assusta até quem nunca fez nem pensou em fazer um aborto, como é o meu caso. O que dizer de um Congresso que leva 24 segundos para aprovar urgência na tramitação da mudança? 24 segundos, senhoras e senhores! Um assunto dessa gravidade foi decidido, sem nenhum debate, nenhuma consulta pública, nada! Poder-se-ia alegar, a favor dos representantes do povo, que o projeto ainda não foi aprovado; apenas a necessidade de sua urgência. Verdade. Mas... Urgência para quem? Por quê? O que vivemos neste momento que nos obrigue a tornar a lei mais rigorosa? Há alguma explosão de abortos? Mulheres estão participando do que chamaríamos de “feira de aborto” por aqui? Não. Nada mudou, ao que tudo indica. E, se mudou – ou tivesse mudado – isso também exigiria discussão, debate, compreensão. Para buscarmos a melhor solução para defender a vida, não a simples punição. O que se quer é PODER, não vida nem bem-estar, muito menos cristianismo. Prova disso é que o atual presidente da Câmara luta desesperadamente para não perder influência e, por essa razão, quis agradar à assim chamada bancada evangélica ao aprovar a urgência nesse tema. Foucault estava certo neste ponto: a busca pelo poder passa pela punição.
O problema é que não se trata de defesa da vida, como alardeiam os que aderem a tal aberração. Se fosse essa a causa, também pensariam na vida das mulheres envolvidas nesses casos de vitimização. Vamos pensar um pouco: por que a vida do embrião/feto é mais valiosa do que a da mãe? Porque ele é inocente, diriam alguns. E a mãe, doente, que corre risco de vida, é culpada de quê? De adoecer? Ah! Criminosa! Mas as mães devem dar a vida pela dos filhos, dirão outros. Pode ser (eu diria que há controvérsias, no entanto, não entrarei nessa discussão), de qualquer modo, o que fazer com o bebê que será órfão e talvez não tenha ninguém por ele nos momentos mais difíceis. E se houver outros filhos? Ficarão abandonados também? Quem cuidará deles como a mãe? Terão mesmo o que podemos classificar como vida?
E se a mulher for vítima da enfermidade do próprio filho? Como podemos garantir que a vida dessa criança não será, para ela mesma e para a mãe, um martírio ainda maior do que a própria morte? Que mãe gostaria de ver um filho sofrer sem poder fazer nada? Apenas esperar sua morte já anunciada antes do nascimento. Isso já não é punição suficiente? Não! É criminosa! Precisa ser punida essa malvada!
Deixei a questão do estupro por último porque é a que mais me toca e a que parece ser o alvo principal dos patrocinadores do novo PL. Acho que qualquer mulher consegue imaginar o que deve ser passar por um estupro. Felizmente, não foi meu caso (pelo menos, até agora, e espero que para sempre), mas posso me colocar no lugar de uma mulher ou menina, que tenha passado por essa situação. Não é tão difícil, mesmo para homens. Vamos fazer um exercício simples aqui: se alguma vez, já foi assaltado ou assaltada, deve compreender como uma vítima de um crime se sente. Eu mesma sou assombrada por alguns traumas até hoje, seis anos depois da experiência do meu primeiro (e até agora único) assalto. Agora, vamos imaginar se, em vez de um bem, um carro, joias, relógio, celular, fosse-lhe tomado o próprio corpo, com todas as implicações que isso tem.
Pois bem, agora, acrescente a isso uma gravidez. O fruto daquele momento pavoroso, assustador, em que você preferia, talvez, ter morrido para não lidar com as sequelas daquilo.
Há um erro grave na forma como esse caso tem sido tratado. Todos dizem que é um absurdo que a vítima do estupro tenha uma pena maior do que a do estuprador. Não é absurdo. Sim, estou dizendo isso mesmo. Não é esse o absurdo.
O absurdo, o impensável, o inimaginável é que a vítima de um estupro tenha qualquer tipo de punição. Não importa de que tamanho. Não veem? Ela já foi punida, mesmo não tendo feito nada para isso. Ela foi punida duas vezes: ANTES de engravidar, ao ser estuprada, e AO engravidar. E não é por não poder abortar. A segunda punição é exatamente ter de lidar com essa questão, tomar uma decisão tão difícil. Ou alguém aí acha que uma mulher vai fazer um aborto como se fosse a uma festa, feliz da vida? Claro que não! Deve ser uma decisão sofrida, dolorosa. Além de ter de passar por mais um procedimento invasivo. Seu corpo sofre de novo.
A prisão, ou a ameaça dela, seria a terceira punição. A definitiva. Aquela que vai impactar a vida dessa mulher para sempre. Se não abortar para não ser presa, terá de lidar com o fruto daquele infortúnio e, quem sabe, não consiga fazer isso de maneira adequada (quem conseguiria?) e ainda teremos um cidadão ou cidadã causando mais problemas para a sociedade. Talvez até um criminoso ou criminosa. Se abortar e for presa, nem preciso explicar.
Cabe, ainda, outra reflexão: se essa criança nascer e, por todas as razões já expostas, vier a ser um criminoso, o que farão os que agora dizem defender a vida? Pelo que tenho ouvido dessas pessoas, pedirão pena de morte. Afinal, “bandido bom ...”. Ninguém saberia, nesse caso, onde teria ido parar o grande zelo pela vida nessa hora...
É preciso lembrar que não há ações isoladas em uma sociedade. Tudo tem impacto sobre tudo e sobre todos. Agora e no futuro.
E o que isso tem a ver com linguagem e comunicação? Por que estou escrevendo sobre isso? Tudo. A vida depende de comunicação. O pensamento, a reflexão também. E, para continuar a subverter os ditos, característica minha que prezo muito, afirmo: o pior defensor da vida é o que não a defende para todos.



