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Sobre esforço e mérito

  • Foto do escritor: Maria Célia Ribeiro
    Maria Célia Ribeiro
  • 8 de ago. de 2024
  • 6 min de leitura



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Tem sido um verdadeiro banquete para os olhos esse período olímpico. Quanta gente boa estamos vendo brilhar no mundo dos esportes! Em especial, fico muito entusiasmada com a ginástica artística, principalmente a feminina. Nossa Rebeca Andrade não se cansa de fazer bonito e continua a nos dar orgulho. Ao lado dela, apenas um minúsculo degrauzinho acima, Simone Biles (menos no solo, em que nossa garota ficou com o ouro e a americana com a prata). Tenho ouvido comentaristas e narradores dizerem que ambas não habitam nosso planeta. “São ETs!”. Concordo, estão mesmo muuuuuuito acima da média de todos os tempos. E isso pode nos levar a tirar conclusões precipitadas e até equivocadas.

Ouvi uma comentarista dizer, em uma das transmissões, que “basta ter força, treinar muito e se dedicar completamente a um sonho que ele vem”. Não é bem assim, infelizmente. Em primeiro lugar, porque a forma verbal “basta” leva os incautos a acreditarem que é simples. Basta se dedicar e tudo dá certo, basta fazer tudo direitinho. Ou seja, não seria necessário fazer mais do que o suficiente. É sim.  Alguém se atreveria a afirmar que o que fazem Biles e Andrade é apenas o suficiente? Em segundo lugar, muitas vezes, as pessoas fazem, sim, tudo o que podem, dedicam-se, entregam-se a um sonho e simplesmente não o realizam. Por quê? Porque a vida é assim mesmo. Às vezes, sim, outras, não... Na trave, vimos tanto Biles como Andrade fora do pódio. Ousaríamos dizer que elas não se dedicaram? Não teriam elas se esforçado para conseguir medalha? E o que dizer dos demais atletas, homens e mulheres, que levaram tombos nas provas de trave e barra? Ninguém ali se dedicou? Não é possível dizer nada disso. Ao contrário, eles são heróis e heroínas que se doaram – e muito – para viver aquele momento. O tombo é frustrante, mas faz parte do percurso.

Mas o mais importante que temos a aprender com as duas ginastas emblemáticas é ainda uma nova camada de reflexão: ambas são mulheres pretas, vieram de famílias com dificuldades em diferentes níveis e se tornaram as maiores do mundo em seu esporte. Simone Biles é filha de pais dependentes químicos e ficou em um orfanato até que seu avô e a esposa decidiram adotá-la. Não deve ter sido nada fácil a infância e adolescência dessa moça. Fico imaginando como ela se sentia quando ainda estava afastada da família no orfanato. Quanto será que ela daria por si mesma? Chegou a imaginar que um dia estaria no lugar mais alto do pódio de um esporte tradicionalmente europeu e branco?

Rebeca Andrade nasceu em uma família monoparental numerosa: tem sete irmãos e sua mãe trabalhava pesado como faxineira para sustentá-los. Li que, muitas vezes, a menina ia a pé para os treinos, na companhia do irmão mais velho, o que lhes tomava mais de duas horas de percurso. Em outra ocasião, chegou a parar de treinar porque não podia arcar com o valor do transporte. Três treinadores decidiram revezar-se para levá-la porque reconheceram seu imenso talento e decidiram ajudar.

Admiráveis essas duas mulheres e seus esforços para chegar aonde chegaram. Mas não nos deixemos enganar. Elas não fizeram apenas o suficiente. Não bastou fazer sua parte, esforçar-se muito e dedicar-se. Elas foram além. Elas mostraram um talento muito maior do que o comum. Por isso tiveram oportunidades. Por isso os técnicos decidiram colaborar para que Rebeca chegasse aos treinos. Não porque ela era muito boa. Mas porque ela era excepcionalmente boa. E a palavra excepcionalmente não está aí por acaso.

Todos os pretos e pretas já ouvimos de nossos familiares que, para conseguir algo, é necessário fazer o dobro dos outros, brancos. Do contrário, não chamaremos a atenção para nós. Não sei se alguém disse isso a Simone ou a Rebeca, mas penso que, de alguma maneira, essa sentença (uma quase condenação) chegou até elas. E elas conseguiram, apesar de tudo. Mas, no caminho, algo poderia tê-las impedido. Nunca saberemos quantas prováveis campeãs ficaram pelo caminho...

Tenho visto, nas redes sociais, algumas mulheres pretas dizerem que tentaram ser ginastas na infância, mas ouviram de treinadores que não deveriam prosseguir porque “negros têm ossos muito pesados”, não têm o perfil para a modalidade. Será que pelo menos algumas delas não teriam conseguido brilhar também, na ginástica? Quem pode garantir que elas não chegariam ao topo se tivessem recebido apoio? Alguém poderia dizer que elas não fizeram o suficiente, desistiram. Não, leitoras e leitores, os outros desistiram delas antes mesmo de tentar. Elas eram meninas, certo? Como iriam insistir em fazer algo que os adultos diziam não ser para elas?

Meu lugar de fala é o de mulher preta que passou por situações desafiadoras que quase me impediram de seguir em frente. Apesar de me sentir especialmente privilegiada, não poucas vezes precisei enfrentar preconceitos e exclusões por minha origem. Fiquei longe da universidade e já achava que não mais voltaria quando, após um alumbramento, como diria o poeta, rompi um noivado que, de resto, estava mesmo fadado ao fracasso. Prestei vestibular novamente depois de oito longos anos fora do circuito acadêmico, e entrei em uma universidade pública. Consegui, finalmente, cursar Letras, graças à preciosa ajuda de uma tia muito querida, que, por essa época, já me podia ajudar financeiramente para que eu me formasse. Não fosse ela, mesmo com minha garra, vontade e dedicação, não teria conseguido. Fico me perguntando quantas mais desistiram dos estudos por falta de condições.

Depois de formada, consegui um bom emprego, não sem alguns percalços e fui, aos poucos, conquistando pequenas vitórias. Hoje, muitos me veem como uma pessoa de sorte e como alguém que conseguiu “vencer na vida”. Verdade. Contudo, para cada vencedora, quantas se perderam pelo caminho?

Outro dia, ouvi de uma senhora que, no tempo dela, “não tinha essa história de passagem de graça para estudante, nem de vaga porque é moreninho, porque é japonês, por qualquer coisa, não. Era inteligência mesmo...” No meu tempo, também não. Mas não me sinto melhor do que ninguém por isso. Nem mais inteligente. Reconheço que, embora haja hoje políticas públicas que aparentemente facilitam o ingresso à universidade, continua sendo muito difícil, especialmente para mulheres pretas. Na minha turma de faculdade, eu era a única preta. Isso está longe de ser minimamente aceitável. O fato de saber que, graças às cotas, essa situação possa ter melhorado, realmente me deixa animada, não rancorosa por não ter tido a mesma “regalia”.

É um equívoco muito comum, especialmente entre brancos, dizer que, por haver negros e negras com algum destaque, tudo depende apenas de mérito. Não é verdade. É mérito, sim, por vezes, dobrado, como já disse acima. Mas é mais do que isso. Dependemos de encontrar o caminho certo e as pessoas certas. E atenção! Não me refiro a “medalhão” quando falo em pessoas certas. Refiro-me àquelas que não se deixam levar, em primeiro lugar, pela aparência, que olham para nós, pretos e pretas, como pessoas como quaisquer outras. E por isso dão oportunidades justas para nós. Mas não é nada simples encontrar pessoas assim. É raro mesmo. Isso posso dizer por experiência. Já fui “avaliada” pela cor da pele e pelo meu cabelo mais de uma vez. E fui posta de lado por causa disso. Contudo, quando aparece gente livre desse preconceito em nosso caminho, ou quando há políticas afirmativas, pode dar certo. Só a partir daí. Então, começa a segunda etapa de dedicação, esforço, perseverança. Tudo de novo.

Veem? Primeiro, precisamos de dedicação, esforço e persistência para conquistar os olhares das pessoas que podem nos abrir as portas. Depois, vem mais dedicação, esforço e persistência, para continuar o caminho. Por isso se diz que precisamos fazer o dobro.

Alguém pode imaginar que estou reclamando da sorte. Não estou. Ao contrário, sou muito feliz e grata por tudo o que conquistei. Essas conquistas só não podem nos confundir, para pensarmos que tudo não passa de esforço e mérito. Há muito mérito. Muito esforço, suor e lágrimas, sem dúvida. Entretanto, não se trata somente disso. Para que alguém chegue ao topo do pódio, sendo mulher preta, é preciso muitíssimo mais. E não há desvalorização nessas vitórias por isso. Rebeca, mais do que Simone até, pode orgulhar-se muito de seus feitos, pois, embora Biles seja mulher preta, vive em um país rico, onde há mais facilidades do que por aqui. O Brasil, apesar de estar melhorando sob vários aspectos, ainda é um país em desenvolvimento, não está entre os “mais importantes” do mundo como os Estados Unidos. A visibilidade de nossos atletas é outra, os investimentos são outros. Enfim, não deve ter sido nada fácil. Talvez tenha sido essa a razão da reverência de Biles a Rebeca no pódio do solo. Ela merece todas as reverências mesmo, até de Simone Biles., a que habita outro planeta.

Em uma propaganda com a voz da mãe da Rebeca, ela diz, em certo momento, que só as duas sabem “o tamanho do salto” que a jovem deu. Nessa fala, está resumida toda a jornada difícil e acidentada dessa jovem mulher preta de tanto sucesso. Não deveria ser necessário sofrer tanto para conseguir algo, apenas por não ser branca. Mas infelizmente ainda é assim.

Seria muito bom se, antes de falar sobre as conquistas pretas, achando que “basta” se esforçar e que não são necessárias políticas afirmativas, todos aprendessem com o grande Ariano Suassuna, quando, ao chegar a um evento negro e ser perguntado o que fazia ali, disse: “Eu vim conhecer o Brasil que não conheço. Eu vim me naturalizar negro”.

 
 

Escritoria - Soluções em Linguagens

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