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Lições olímpicas

  • Foto do escritor: Maria Célia Ribeiro
    Maria Célia Ribeiro
  • 31 de jul. de 2024
  • 4 min de leitura


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Começaram os Jogos da XXXIII Olimpíada da Era Moderna. E a abertura, no último dia 26, causou grande impacto na França, onde ocorrem as competições, e em todo o mundo. Havia enorme expectativa, pois já se sabia que o desfile dos atletas seria realizado, de forma inédita, fora de um estádio. Aliás, toda a cerimônia foi assim. Todos estávamos curiosos e ansiosos para ver como esse feito se daria.

O que talvez não se esperasse era a imensa polêmica gerada em torno das escolhas feitas pelos donos da casa, de modo a reafirmar as características já bem conhecidas do país: houve espaço para o cancã (sim, é assim que a famosa dança está registrada no VOLP), balé no telhado, rock pesado misturado com ópera e até para Maria Antonieta segurando a própria cabeça, o que, compreende-se, causou certo incômodo na nobreza europeia presente à cerimônia.

A maior discussão, entretanto, girou em torno de um desfile de moda, realizado com a participação de jovens estilistas franceses e de modelos de todos os gêneros imagináveis. Esse foi o grande momento LGBTQIA+ da abertura. A certa altura, entrou em cena, Dionísio, o deus grego do vinho (o que também é facílimo de relacionar à França, não?). Ele foi “depositado”, em uma enorme bandeja, sobre o centro da passarela e diante de várias pessoas vestidas de modo bastante ousado. A maioria drag queens. Essa cena lembrou, a muitos, o quadro “A última ceia”, de Leonardo. Isso foi suficiente para criar uma gritaria mundial, criticando a audácia dos franceses.

Bem, vi a abertura toda, ao vivo, e confesso que, no momento, não me ocorreu a possível referência à obra de Da Vinci. Entretanto, olhando melhor, após os comentários, vejo realmente alguma semelhança. Contudo, ainda que houvesse essa intenção, o que a direção dos jogos nega, não compreendo o motivo de tanto barulho. Afinal, Jesus não era aquele que defendia as minorias? Não foi ele que pediu para atirar a primeira pedra quem não tivesse pecado? Não foi ele que criticou os líderes religiosos de sua época e se colocou ao lado de menos favorecidos em muitas oportunidades? Não. Não há motivo para tamanha fúria dos autodenominados “cristãos” do século XXI, que, é preciso que se diga, mais se parecem com personagens da Idade Média sob alguns aspectos.

Além disso, a França demonstrou que desejava mesmo marcar sua postura como defensora da diversidade. E o fez com brilhantismo, desde o primeiro minuto. É verdade que, em alguns não raros momentos, assim como muitos mundo afora, eu me senti um pouco desconfortável na abertura. Por exemplo, com a decapitada rainha. Achei um pouco agressivo. Mas não seria isso mesmo que pretendiam os organizadores? Incomodar para provocar a reflexão, o questionamento? Isso costuma funcionar muito bem para nos empurrar adiante.

No entanto, as lições aprendidas durante esta edição olímpica não pararam por aí. Temos acompanhado cenas inesquecíveis e gostaria de citar duas situações que me chamaram a atenção de forma bastante positiva.

Nossa medalhista de bronze no judô, Larissa Pimenta, contou que, após sua derrota nas quartas de final, chorava muito e se jogou no chão, sentindo-se “acabada”. Sua oponente, a francesa Amandine Buchard, foi até ela, ajudou-a a levantar-se e disse: “Levanta, não acabou ainda”. Depois disso, a brasileira, que já tinha jogado a toalha, para ficar no jargão esportivo, sentiu-se fortalecida, foi para a repescagem e conquistou sua primeira medalha olímpica. Ainda ouviu da treinadora, Sarah Menezes, medalha de ouro em Londres 2012, que ela, Larissa, é campeã olímpica. “Mas eu fui bronze”, respondeu a atleta, sem entender. “Para mim, você é campeã olímpica”, retrucou a técnica. Não houve briga, bate-boca, xingamentos, birra, ranger de dentes, nada. Houve apoio, força e união.

Já a fadinha brasileira do esqueite (é isso mesmo, a palavra foi aportuguesada), também bronze nestes jogos, deu-nos outra aula de esportividade: pediu aos fãs que torcessem para todas acertarem as manobras, que não torcessem contra suas adversárias. “Espírito skatista é assim, é para a gente acertar. Uma torcendo pela outra, não tem nada de rivalidade dentro de pista. Se vocês acham que tem rivalidade, estão criando coisas na cabeça de vocês. Nunca existiu e se acontecer vai ser lá para 2070, porque na minha geração não vai ter não, isso vocês podem ter certeza”, decretou Rayssa Leal. E ela tem só 16 anos! Imagine quando ganhar mais experiência, nas Olimpíadas e na vida!

Esses dois eventos nos mostram que uma competição não precisa – e não deve – ser uma guerra. O adversário não é inimigo. É alguém que, como cada um, lutou e se esforçou muito, venceu diversos obstáculos, para estar ali. E merece respeito em primeiro lugar. De todos. Não é bom que vejamos o outro como rival. Não é bom não apenas para o outro, sobretudo para nós mesmos. Esse sentimento faz mal à nossa saúde mental.

Rayssa ainda se atreveu mais: em uma das manobras para conquistar sua segunda medalha olímpica, a mais jovem atleta brasileira a consegui-lo mandou, em libras, a seguinte mensagem: “Jesus é o caminho, a verdade e a vida”. Tal gesto é passível de punição, uma vez que manifestações religiosas e políticas são proibidas na Olimpíada. Claro que a garota de prata e bronze sabe muito bem disso. Então, por que decidiu correr o risco de ser punida? Eis aí a próxima lição da fadinha: ela é segura o suficiente para ser quem é e dizer o que pensa, independentemente da aprovação dos demais. E já que falamos tanto em diversidade na abertura, não creio que seja correto puni-la. Aguardemos o veredito dos mandachuvas dos Jogos Olímpicos.

O mundo tem os olhos voltados para Paris nos últimos dias. Espero que não estejamos vendo apenas as competições e as medalhas, mas também, e principalmente, as pequenas lições que vão surgindo de cada ação, cada fala, cada gesto. E mais: que tragamos para o nosso cotidiano a força, a coragem e o companheirismo demonstrado por essas mulheres olímpicas, além de aprendermos, com os franceses, o poder e a riqueza da diversidade.

 
 

Escritoria - Soluções em Linguagens

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