Vazio feroz em um mundo de aparências
- Maria Célia Ribeiro

- 5 de jul. de 2024
- 4 min de leitura

Parada no semáforo, observei um motorista ao lado que parecia ansioso para avançar. Quando o sinal abriu, outro veículo passou por nós em velocidade. O que estava próximo de mim não gostou e decidiu perseguir e “fechar” o atrevido que o deixara para trás. Por três ou quatro quarteirões, ambos se provocaram e se xingaram, até que um deles acelerou e foi embora. O outro fez menção de segui-lo, mas, por alguma razão, desistiu e mudou o rumo. Ufa! Que alívio! Não tinha nada a ver com a briga, mas sempre fico aflita quando vejo uma situação assim.
Fiquei imaginando o motivo de tamanha raiva entre duas pessoas que nem se conhecem. Às vezes, acontece de estarmos prestes a chegar ao semáforo vermelho e ele abrir, então, como não precisamos parar completamente, acabamos passando outros carros que estavam parados. Qual é o problema? Por que isso ofende tanto a alguns? Por que há quem se sinta diminuído em uma situação como essa?
Recentemente, vi a notícia de uma circunstância parecida, que não terminou tão bem, embora não fosse um fim trágico (por muito pouco!). Um casal foi almoçar em um restaurante japonês para comemorar o aniversário da mulher. Ainda que estivessem acostumados a frequentar o local, um dos pratos provocou alergia nela, que precisou ser levada ao hospital às pressas. O marido, então, saiu velozmente, buzinando e dando luz alta a todos à sua frente. Entendo bem sua atitude, porque sou alérgica e já passei por algo assim. Dá um desespero! Um condutor, no entanto, não quis dar passagem. Era um dentista e instrutor de tiro, em um carro “de luxo”, como costumam dizer os jornalistas. Eles começaram uma discussão, o marido sempre buzinando e gritando que se tratava de uma emergência, mas o outro não queria saber. Quem se atrevia a querer passar na sua frente? Logo ele, tão poderoso, com seu carro caro e suas armas a bordo! Quando houve uma brecha, o marido passou. E imaginem! O outro disparou cinco vezes contra o casal. Acertou um tiro em cada um. Felizmente, nenhum atingiu órgãos vitais..., segundo os médicos, “por um milagre”. E a questão psicológica? A mulher, embora em casa agora, não consegue falar sobre o assunto sem chorar. Diz que fica mal sempre que vê um carro branco (a cor do veículo de luxo) por perto. Pudera! Não é para menos!
Tais circunstâncias e outras tantas que não cabe narrar aqui, fizeram com que eu refletisse sobre o tamanho do vazio na vida de pessoas que gastam tempo e energia (além de projéteis) com acontecimentos tão pequenos, corriqueiros... Sim, porque, se a vida está boa, em ordem, com conteúdo, as pessoas não se ocupam com tão pouco, penso eu.
Apenas um vazio imenso na vida de alguém explica tanta fúria, tanta preocupação em chegar primeiro, passar antes, exigir tanta deferência... É preciso, acho eu, sentir-se muito pouco, quase nada, para querer parecer tanto e tão importante!
Por outro lado, fui tomada de um certo alento quando soube de outra notícia. Uma tentativa de assalto a uma loja de conveniência na zona sul de em São Paulo foi frustrada por policiais e um motoqueiro que estava no local. Os três assaltantes portavam arma falsa e, quando a polícia chegou, resistiram à voz de prisão. Houve luta corporal, um dos assaltantes tentou pegar a arma da polícia e, depois de três minutos, os homens foram detidos em flagrante. Detalhe importantíssimo: ninguém foi ferido. Os policiais se esforçaram para conter os criminosos sem que ninguém se machucasse. Essa é a polícia que admiro, respeito e louvo. Apesar de ter havido resistência, da tentativa de um dos ladrões de pegar a arma de um dos policiais, ninguém morreu, ninguém se feriu.
Por que eles não agiram como tantos outros, que como “homens da lei” se sentem acima dela e aproveitam-se do fato de estarem armados para fazer valer sua autoridade? Só pode ser porque eles sabiam quem eram, qual era seu papel ali e foram bem treinados, claro.
Cada vez mais me convenço de que nos tornamos pessoas melhores quando compreendemos o quanto valemos, gostamos de nós mesmos e sabemos nosso papel no mundo. Parece frase de livro de autoajuda, também parece fácil de fazer, mas, em um mundo em que as aparências contam tanto, não é. É necessário muito conhecimento, muita consciência e autoestima para conseguir chegar a se valorizar e se gostar sem precisar contar com dinheiro, armas e “carteiradas”.
O homem dos cinco tiros fugiu e só foi localizado depois de quase duas semanas. Foi indiciado por tentativa de homicídio, apesar de alegar “legítima defesa” (jura?) por achar que estava sofrendo um assalto. Os três ladrões do posto de combustível estão atrás das grades. Como diziam os Titãs, “polícia para quem precisa”.
E o vazio do qual falei? De onde vem ele? Deve haver inúmeras origens. Não suponho que haja uma resposta fácil para algo que atormenta toda a sociedade. Desconfio sempre de certezas e de soluções simples demais. De qualquer modo, tenho um palpite: se buscarmos mais informações, mais alegrias, mais sensibilidade, tudo pode melhorar. E de que modo fazemos isso? A literatura é uma das possibilidades. Quando preenchemos nosso cérebro e nosso tempo com palavras bem escritas, narrativas bem elaboradas, histórias interessantes, desenvolvemos empatia. Descobrimos como é “ser” outra pessoa e isso nos proporciona a capacidade de pensar antes de gritar, surrar, atirar.
Sobram dificuldades no mundo, é verdade. E, embora seja necessário trilhar percursos complexos para encontrar soluções, uma parte importante dessa jornada é sempre a linguagem.



