Triste Paradoxo
- Maria Célia Ribeiro
- 11 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
Vivemos na era da comunicação! Século XXI: redes sociais, aulas online, videochamadas, inteligência artificial. Tudo inventado para melhorar a vida do ser humano e, principalmente, para que ele se comunique melhor e mais velozmente. O que poderia dar errado em um mundo tão avançado tecnologicamente? São tantas as facilidades para falarmos uns com os outros, para encontrar pessoas distantes e, com a ajuda da IA, até de escrever belos textos!
Entretanto, o noticiário está repleto de infelizes acontecimentos envolvendo violência, no lugar da comunicação. Vou citar dois, apenas a título de exemplo.
Em Santos, nesse fim de semana, um senhor caminhava com o neto de 11 anos e, ao atravessar a rua, houve uma freada brusca, o que o levou a apoiar-se no capô do carro envolvido. Segundo o garoto, o sinal estava fechado para os carros. Não sabemos ao certo, ainda há muitas dúvidas a respeito do que, de fato, aconteceu. O que, sim, sabemos é que, devido a essa situação, o motorista do automóvel decidiu descer e aplicar uma “voadora” no pedestre idoso, o que levou este à morte horas mais tarde. Qual teria sido a motivação dessa agressão? O menino não relatou nenhuma discussão, nenhum xingamento, nada. Mas, ainda que tivesse havido algo assim, o que leva um homem adulto, em pleno século XXI, a agir como se fosse um moleque briguento e mal-educado ou, pior, um Australopithecus? Não aprendeu a comunicar-se? Não sabe expressar as próprias frustrações e queixas por palavras, de preferência, não- -violentas? Não estamos mais na pré-história, estamos?
O outro caso é menos trágico, mas não menos estarrecedor. No elevador de um prédio residencial, um rapaz está com seu cão, o Farofa. Outro morador do prédio reclama porque o cachorro não está usando focinheira. Houve uma pequena discussão em torno desse tema. Um mês mais tarde, os dois voltam a se encontrar no elevador. Desta vez, sem o Farofa. No entanto, o que havia reclamado do pet voltou à carga e perguntou se o vizinho continuava andando por aí com um cachorro agressivo sem focinheira. Não sei qual foi a resposta, o que vi, embasbacada, foi o interpelador empurrar o rapaz e dar-lhe um soco no rosto, forte a ponto de derrubá-lo, antes de descer do elevador. O cão não me pareceu perigoso, quando o vi pela TV. Mas, ainda que fosse esse o caso, é assim que se resolvem essas questões? Por que agredir em vez de conversar, pedir providências à administração do prédio. É muito comum haver canais digitais de comunicação nos condomínios. Era só tirar uma foto do cão e enviar, com dia e horário para o síndico, pedindo a ação adequada ao caso. Fácil, não? Contudo a solução encontrada foi agredir, socar, bater.
Fico me perguntando o que aconteceu com a humanidade. Não consigo chegar a nenhuma resposta. Por um lado, progredimos tanto; por outro... tanta violência, tanta agressividade. Ausência total de capacidade comunicativa.
Comunicação vem de “comum”. É algo que passa do individual para o âmbito coletivo. Tanto quanto se sabe, a linguagem verbal foi criada quando nossos ancestrais perceberam a insuficiência do que tinham à disposição para expor tudo o de que precisavam. Passaram, então, dos desenhos, aos sons e destes às palavras, frases e textos. Foi um processo longo, imagino. Não creio que um sistema tão complexo tenha surgido da noite para o dia.
Então, o que aconteceu? Por que estamos jogando fora todo esse esforço?
Na semana passada, falamos sobre Franz Kafka, autor tcheco, de língua alemã, falecido há cem anos. Dentre seus textos mais famosos, está A metamorfose. Para quem não conhece, recomendo ler. É brilhante! Trata-se de um comerciante que, de repente, vê-se transformado em um “inseto monstruoso”. A partir daí, sua relação com todos os demais se deteriora.
Essa história, entre outras questões, trata da incapacidade de comunicar-se. Isso leva o protagonista à ruína, uma vez que, ao vê-lo transformado em um inseto, sem que ele conseguisse dizer como se sentia, o que estava acontecendo com ele e em que pensava, a família passou a temê-lo. A mãe chega a passar mal quando ele se aproxima, com medo do que ele pudesse fazer. Nós, leitores, sabemos que ele não era mau, pois conhecemos seus pensamentos. Todos os outros não têm ideia do que se passa com ele e sentem-se ameaçados. Os leitores, por outro lado, sentem pena do pobre homem-bicho.
Percebem? Qual é a grande diferença entre leitores e personagens? A palavra. O narrador nos comunica tudo o que se passa na mente do infeliz comerciante. A comunicação faz com que ele se torne mais próximo de nós. Apesar de sua aparência, conseguimos vê-lo como humano e nos identificamos com ele. Já sua família, chefe e outros conhecidos não têm acesso ao que nos é comunicado. Portanto, acreditam não ter mais nada em COMUM com Gregor Samsa, o protagonista. Não havia COMUNICAÇÃO.
Citei esse livro apenas para mostrar como Kafka já percebia, no início do século XX, o quanto é importante o uso adequado da linguagem. Não basta saber falar, não basta saber ler e escrever. É preciso saber comunicar-se. Tornar algo comum ao grupo envolvido na situação. Só assim é possível humanizar-se.
É pena que, na era da comunicação, da informação e da tecnologia, estejamos nos comportando, cada vez mais, como seres incapazes de criar algo em comum e de conviver.