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Simples sim; simplista jamais

  • Foto do escritor: Maria Célia Ribeiro
    Maria Célia Ribeiro
  • 27 de mai. de 2024
  • 4 min de leitura

Muitas são as discussões sobre a necessidade de simplificar textos e tornar expressões mais inteligíveis. Concordo. De nada adianta tratar de assuntos relevantes se as pessoas não compreendem o que se diz. Mas será que vale tudo para simplificar?

A preocupação não é nova. Tenho ouvido sobre a “necessidade” de modificar textos há anos. Já se falou em mudar o Hino Nacional, uma vez que o brasileiro médio não tem a menor ideia do que seja o “lábaro estrelado” ou a “clava forte”. Creio que um bom dicionário e uma pitadinha de curiosidade poderiam resolver esse problema, não? No entanto, ainda há outros entraves: o que fazer com a estrutura sintática, tão complexa, do nosso Hino? Bem, isso exigiria um esforço um pouco maior. Mas conseguiríamos cantá-lo com a sintaxe mais simples? Teríamos que mudar também a melodia. Simplificá-la? Ficaria melhor? Em quê? Por quê?

Tempos depois, foi a vez da obra de Machado de Assis. Era preciso “modernizar” a linguagem – leia-se: simplificar, tornar menos “difícil”. Outra tempestade. “Que absurdo! Como macular a obra de nosso maior autor?!”, dizia-se de um lado. “Mas os jovens não vão ler nada disso se não houver a modernização! Será a morte do autor!”, clamava-se de outro. Parece-me que foram feitas algumas experiencias. Se não me engano, uma autora, de cujo nome não me lembro, aventurou-se a “traduzir” Machado para um português “mais atual”. Confesso que não tenho ideia do sucesso, ou insucesso, da tentativa. O que sei é que Machado continua firme e forte entre leitores mais experientes e mais jovens. Talvez por ser cobrado em vestibulares? Pode ser. Contudo, ainda acredito na força de sua obra. Ninguém conseguiu me convencer de que esteja ultrapassado. Aliás, sempre me lembro dele quando surgem questões sociais graves em pleno século XXI que ainda exigem resposta. Ele já as havia apontado. Uma vez mais, talvez seja necessário recorrer ao dicionário (ou a um site de buscas, agora é tão mais fácil!). Que mal isso nos faria? No máximo, ampliaria nosso vocabulário.

Agora, temos visto os esforços do campo jurídico para simplificar a linguagem. O Ministro Luís Roberto Barroso, Presidente do Supremo Tribunal Federal, tem falado em “pacto do judiciário pela linguagem simples”. Segundo ele, os juristas devem se comunicar de maneira mais direta e objetiva para evitar que a linguagem seja hermética e excludente. Chegou a fazer piada com a expressão “mútuo feneratício” (empréstimo de dinheiro com cobrança de juros), dizendo que ela o faz lembrar-se da uma posição do Kama Sutra.

Aliás, lembro-me eu agora de uma conversa que tivemos em uma aula de versão do Português para o Alemão, anos atrás. Fazíamos a versão do trecho de um livro de Milton Hatoun. Ao ler a sua versão, um aluno ouviu do professor que ele havia feito um anacoluto em alemão! Ao que ele respondeu: “Professor, se eu chegar em casa e disser pra minha mulher que fiz anacoluto na língua alemã, ela me manda embora!”. Começamos todos a rir, naturalmente, e a discussão voltou-se para o que seria o tal anacoluto. Como eu era a única especialista em língua portuguesa na turma, coube a mim a explicação: trata-se de uma construção sintaticamente desconexa, mas unida pelo sentido, ou seja, algo que não é simples do ponto de vista estrutural, mas que conseguimos compreender pelo significado das partes aparentemente desarmônicas. Perguntaram se seria uma inversão. Não. Não é a mesma coisa. “Então, como podemos chamar?”, queriam saber. Anacoluto... Fazer o quê? É esse o nome que tem.

E é necessário fazer anacolutos? Depende de nossa intenção. Alguém diria que é mais fácil memorizar a frase “O feio parece bonito para aquele que o ama” do que “Quem ama o feio, bonito lhe parece”? O efeito de sentido é outro. O ritmo é outro. O impacto é outro. Pois bem, nesta última expressão, ocorre anacoluto.

Ainda sobre a fala do Ministro Barroso, ele pede que se escrevam, sempre que possível, as orações na ordem direta: “sujeito, verbo e predicado”. Embora ele tenha se esquecido de que o verbo faz parte do predicado, vamos refletir sobre a solicitação. O que significa “sempre que possível”? Penso eu que sempre que isso não interferir no efeito de sentido que se quer dar. E isso é uma decisão simples? Não é. Seria preciso mais tempo e mais conhecimento linguístico para se escrever de modo simples, sem empobrecer a linguagem.

Não sou contra a simplificação. Ao contrário: acho até que ela é sempre bem-vinda. É, a meu ver, a forma mais elegante de se expressar. Concordo inteiramente com o Ministro que a expressão “mútuo feneratício” pode ser evitada. Não devemos ser excludentes, nunca, penso eu. E é por isso que a linguagem é como roupa: escolhemos aquela mais adequada a cada situação. E isso também exige que se seja um pouco poliglota na própria língua. Isso só se consegue com a melhora no ensino dela. Não há outra forma. Não podemos deixar de lado a importância de aprender adequadamente nossa língua materna para que todos sejam inclusos.

Simplificar sim. Só não podemos confundir simplicidade com simplismo. Às vezes, em busca de algo que alcance a todos, acabamos por destruir a riqueza e a multiplicidade da língua, construídas ao longo de tantos séculos. Fiquemos atentos.

 
 

Escritoria - Soluções em Linguagens

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