Riqueza desprezada - Uma homenagem no Dia Mundial da Língua Portuguesa
- Maria Célia Ribeiro
- 5 de mai. de 2024
- 4 min de leitura
Todos já ouvimos, em algum momento, que latim é uma língua morta. Fato. Mas será que todos sabemos o que isso significa? Bem, grosso modo, podemos dizer que não há falantes dessa língua no mundo. Não mais. Há muito tempo. E olha que o Lácio, região de origem do latim, era parte importantíssima do poderoso Império Romano! Então, por que a língua morreu? Porque Roma não é mais o centro do mundo, dirão alguns. Sim, mas não é só isso.
A língua é um legado cultural que depende, entre outros fatores, de pessoas que a utilizam. E isso não é algo que se determine pelo poder econômico ou bélico de um povo. Se fosse, haveria ainda alguma língua indígena no mundo? É claro que há influências diversas. Mas é um fenômeno muito mais complexo do que parece à primeira vista.
Ouso dizer que um dos elementos mais importantes para a sobrevivência de uma língua é, paradoxalmente, sua relação com os outros idiomas falados no mundo. Termos que se incorporam a uma língua, vindos de outras partes do planeta, tornam-se parte de uma riqueza incalculável.
Ocorrem-me agora alguns casos específicos: “trem” é o aportuguesamento da palavra inglesa “train”. Parece tão português, não é? Os mineiros que o digam! E “alfaiate”? Hoje em dia, quase nem usamos mais essa palavra, mas houve tempos em que um senhor respeitável da sociedade não poderia viver sem um. Veio do árabe.
As mulheres vaidosas não vivem sem batom. O termo vem do francês e significa, na origem, “bastão”... Não precisamos sair do país para encontrar influência de outras línguas. “Pipoca”, tão importante para tantos no cinema, é de origem tupi. E você gostava de brincar na gangorra quando criança? Eu acho divertido até hoje. “Gangorra” vem dos povos bantos, portanto, origem africana. E o que dizer dos termos mais modernos, como “deletar”, “fazer um download” ou “clicar em um link”?
Será que, se nos recusássemos a incorporar termos como esses, nossa língua “pura” seria melhor em algum sentido? Mais rica? Claro que não! Não estou aqui defendendo que saiamos falando e escrevendo estrangeirismos a torto e a direito, sem nenhum critério (aliás, a expressão “a torto e a direito”, segundo especialistas, teve origem em antigas feiras europeias – mas um exemplo de empréstimo linguístico que deu frutos!). Quando eu estava na faculdade, tinha colegas que não se intimidavam em dizer que tinham escrito um “paper” para entregar a determinado professor. Isso incomodava a muitos de nós. “Paper”?! No contexto universitário, usamos, com mais propriedade, o termo monografia, ou até mesmo, “trabalho”, se quisermos; mas “paper” soa arrogante... Contudop ninguém se aborrecia quando alguém dizia que faria um download. E nem é por não haver alternativas. As pessoas poderiam perfeitamente dizer que “baixariam um arquivo” e todos as compreenderiam. Percebem a diferença? Há palavras que se incorporam “naturalmente” em nosso vocabulário. Outras, no entanto, parecem “forçadas”, fora de lugar. Esse é um dos critérios possíveis para identificar os “excessos”. E, convenhamos, nada científico, não é? É o famoso “a voz do povo é a voz de Deus”. As pessoas usam ou não um termo com naturalidade.
Nós, lusófonos, também andamos “exportando” palavras mundo afora. Um exemplo é “zebra”, de origem portuguesa que foi parar no inglês. Outros termos comumente usados no exterior e que são bem nossos: “samba”, “favela”, “fetiche” (sim! Veio do francês depois que eles a importaram do português – por aproximação fonética de “feitiço”).
Pois bem, tenho lido algumas reportagens que dão conta do descontentamento (em alguns casos, até revolta mesmo!) de alguns pais e mães portugueses em relação a mudanças na linguagem dos filhos. Isso se deveria ao fato de que os jovens e as crianças lusitanas têm sido influenciados por youtubers brasileiros (ops, outro anglicismo!) e estão assimilando a linguagem ali empregada. Os mais velhos argumentam que essa mudança não é positiva e torna os pequenos e adolescentes “menos portugueses” do que deveriam. Um casal chega a se queixar de que conhecidos teriam perguntado se algum deles era brasileiro, pois seus filhos diziam “grama” em vez de “relva”, “ônibus”, no lugar de “autobus” e pegam refrigerantes na “geladeira”, não no “frigorifico” (informações extraídas de https://www.correiobraziliense.com.br, em matéria de 11 de novembro de 2021, mas há outras reportagens de outros veículos de imprensa que abordam o mesmo tema).
Acho curioso, para dizer o mínimo, que um povo que impôs sua língua aos indígenas que aqui encontraram agora reclamem que essa mesma língua esteja sendo “contaminada” por brasileiros. O que esperavam? Que fôssemos segui-los eternamente? Como subalternos? Hoje, há muito mais falantes de português no Brasil do que em Portugal e é preciso que nossos irmãos lusitanos aprendam a lidar com isso.
Mas, mais estranho ainda, parece-me, é o fato de que não percebam que essas “assimilações” trazem, na verdade, riqueza para a sua língua e sua cultura. Essa influência significa mais, não menos. A língua latina morreu porque não incorporou as novas falas de seu tempo. Aos poucos, foi sendo abandonada, com a falta de contato entre os povos que passaram a falar de forma diferente entre si. Embora tenha se tornado a “mãe”, por assim dizer, de tantas outras línguas, inclusive da nossa, “última flor do Lácio, inculta e bela”, não resistiu, ela mesma, como língua viva.
Vida, nesse caso (e em tantos outros), significa mudanças, assimilações, adaptações, incorporações. Pena que seja difícil aceitar essa realidade num mundo em que as pessoas veem o “estrangeiro” e o “diferente” cada vez mais como inimigo, num mundo em que a xenofobia tem sido vista com certa tolerância – e até alguma simpatia – por tantos. Por isso, talvez, a língua “brasileira” seja tão criticada por alguns portugueses. Infelizmente, parece que a vida não tem espaço na língua dessas pessoas.