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Politicamente correto ou humanamente afável?

  • Foto do escritor: Maria Célia Ribeiro
    Maria Célia Ribeiro
  • 30 de abr. de 2024
  • 4 min de leitura

Acho curioso como as mudanças vão se sucedendo, muitas vezes, sem que as percebamos. De repente, passamos por aquela rua de sempre e notamos que há algo novo ali: um prédio, uma grade, uma planta...

Com as palavras, também acontece assim. Elas mudam, transformam-se, acompanhando o ritmo dos tempos, sempre intenso. Um exemplo que me chamou a atenção outro dia é do campo dos pets. Quando eu era criança, tinha um cachorrinho de estimação (ainda não usávamos a palavra “pet” naquela época). Ele se chamava Pepe. E ninguém achava estranho nem torcia o nariz quando dizia que eu era dona do cachorro. Isso era absolutamente normal.

Hoje, com a evolução na compreensão das relações e no modo como vemos os demais seres vivos, já fica esquisito; embora alguns ainda utilizem o termo “dono”, é muito mais comum e até mesmo aceitável usar a palavra “tutor”. Há, ainda, quem prefira dizer “pai” ou “mãe” do pet... Sim, hoje cachorros e gatos têm família, não donos. Isso mostra que estamos enxergando a situação dos bichos de forma mais... humana, desculpem o trocadilho.

Assim como no caso citado, também houve mudanças na maneira como vemos outros termos que antes eram utilizados sem questionamento, mas hoje já não são mais tão apropriados, devido à nossa nova compreensão dos fatos. Exemplo disso são palavras e expressões ligadas a ideias preconceituosas ou racistas: denegrir, por exemplo. Atualmente, vemos esse verbo como algo pejorativo em relação aos negros: denegrir alguém é torná-lo negro, ou seja, ser negro é, do ponto de vista dessa palavra, algo ruim, negativo. Alguns dirão que não é no sentido literal, por isso não seria racista o termo. Sim, no entanto, não deixa de dizer, de algum modo, que ser branco é melhor do que ser negro, ou não?

O que me chama a atenção nessa história é que nunca vi ninguém reclamar ou questionar o fato de a palavra “dono” ter quase caído em desuso em relação a animais. Nem deveria. Acho a mudança positiva, mais respeitosa. Entretanto, é com frequência que ouço críticas sobre as restrições a termos como “denegrir”. As pessoas queixam-se da “mania do politicamente correto” e que o mundo está “muito chato” sempre que ocorre uma referência ao tema.

Não causa espanto a forma como todos parecem ter se adaptado rapidamente ao vocabulário relativo aos animais, especialmente os de estimação, mas, quando se trata de pessoas, reclamam da necessidade de se preocupar com a escolha das palavras? Aliás, causa-me, mais do que espanto, eu diria, tristeza até, que as pessoas se incomodem tanto com a necessidade de se preocupar em não diminuir outras ou de não as tratar de forma adequada ou referir-se a elas de modo que lhes desagrade.

Temos visto aumentarem as campanhas contra o sofrimento dos animais. Proliferam os grupos que se propõem a denunciar maus-tratos contra nossos amiguinhos de quatro patas. Isso é um progresso! Mostra o quanto nos tornamos melhores e mais preocupados com o sofrimento alheio.

Contudo, quantos grupos de combate ao bullying nas escolas vocês conhecem? Ué, a ideia não é evitar o sofrimento de seres vivos? Das duas, uma: ou não consideramos crianças e adolescentes seres vivos, ou achamos que eles não sofrem com o que acontece nesses casos.

Mas, se não sofressem, qual seria a causa dos problemas de ansiedade, depressão e, em casos mais graves, suicídios e homicídios?! Não entendo que as pessoas consigam se sensibilizar com o sofrimento dos cãezinhos (no que estão certíssimas),e não se deixem tocar pela tristeza de crianças e jovens.

Demonstramos o amadurecimento e crescimento da humanidade quando nos preocupamos em evitar testes de cosméticos em cobaias, quando não queremos ver pets passando fome ou presos, sozinhos, em espaços pequenos demais para eles. Em contraposição, depomos contra esse mesmo desenvolvimento ao naturalizarmos situações de humilhação ou agressão envolvendo pessoas, alegando que são apenas “brincadeiras”. Tenho ouvido muito o argumento de que “no meu tempo, todo mundo fazia isso e ninguém chorava!”

Verdade. No meu tempo também. Tínhamos uma colega (muito querida, por sinal) que todos chamávamos de “Gorda”. Ninguém a chamava pelo nome! Era “Gorda” e pronto! E isso era natural para nós. E, aparentemente, para ela. Mas alguém consegue imaginar essa situação hoje? Seria absurdo, não? Fico me perguntando como ela se sentia triste, sem que ninguém soubesse ou imaginasse.

É assim mesmo. Os tempos mudam, nós evoluímos (às vezes, não, infelizmente) e precisamos estar atentos e atentas a fim de evitar situações desagradáveis e impróprias.

O meu Pepe brigou com cães vizinhos mais fortes do que ele e teve um olho cegado. Ninguém em casa pensou em ir atrás dos vizinhos para procurar “fazer justiça”. Era assim naquele tempo. Tempos depois, ele fugiu de casa querendo acompanhar minha avó até a padaria e, ao tentar atravessar a rua, como não enxergava de um lado, não viu um ônibus se aproximar e foi atropelado. Sofri muito sua perda. Lembro-me dele com carinho até hoje. Mas nenhuma providência foi tomada a esse respeito. Ouvi no rádio (sim, eu ainda ouço rádio!) hoje cedo que um cão morreu ao ser transportado por uma companhia aérea. Chamava-se Joca. Houve uma confusão na hora do embarque, e ele foi parar a quilômetros de onde deveria. Acabou morrendo, infelizmente. A família do cão  exige reparos. Agora é assim. E está certo. As pessoas precisam se responsabilizar pelo que fazem.

Se fosse hoje, a história do meu Pepe, certamente, teria sido de outra forma. Não sei exatamente o que poderíamos fazer, mas sei que seria diferente. Que bom pensar que progredimos. Falta agora avançarmos também quando a parte sofredora é um ser humano. Não importa se eu entendo ou não esse sofrimento. Não importa se eu também sofreria no lugar dele. O que realmente importa é respeitar os limites e os direitos do outro. Seja pet ou humano.

 
 

Escritoria - Soluções em Linguagens

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