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Devagar com o julgamento que o preconceito é de aço

  • Foto do escritor: Maria Célia Ribeiro
    Maria Célia Ribeiro
  • 1 de jul. de 2024
  • 4 min de leitura
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Não é de hoje que ocorrem polêmicas no mundo das letras. Na verdade, sempre houve. Lembro-me bem de quando Bob Dylan foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2016. Houve gritaria de todos os lados, contra e a favor da escolha. O que mais incomodava a muitos era o fato de que o compositor norte-americano não publica livros, mas cria e grava canções. Foi agraciado por suas letras e considerado pelos membros da academia sueca um grande poeta na tradição da língua inglesa. Sou a favor dessa premiação? Não sei dizer. Não por considerar que letra de música não é poesia (vejam Chico Buarque ou Vinicius de Moraes, por exemplo), mas por não conhecer a fundo as composições de Dylan. Contudo, admito que fiquei surpresa e um tanto incomodada quando ouvi a notícia. Se acabo de afirmar que não conheço as obras do laureado, podemos concluir que foi puro preconceito de minha parte, não? Sim, foi mesmo. Não me orgulho disso, mas preciso admitir. Esse fato, contudo, não me levou a buscar mais conhecimento acerca do compositor, portanto, continuo sem poder opinar a esse respeito.

Recentemente, houve nova polêmica: a exposição dedicada à funkeira Anitta no Museu da Língua Portuguesa. Isso me levou a refletir sobre o assunto novamente. Vejam, eu já havia me conformado com meu preconceito em relação a Bob Dylan, como se pode facilmente perceber pela minha inércia. No entanto, agora, o tema ficou me incomodando como uma pedra no sapato. Por que Anitta? Tudo começou quando recebi, de uma amiga e grande companheira de reflexões (além de taças de um bom vinho e saborosos pedaços de pizza), um vídeo extremamente irônico comentando a mencionada exposição. A moça na tela insistia em destacar a descomunal diferença entre Anitta e Machado de Assis, além de citar alguns “trechos” de letras da cantora em que há uso de termos chulos e referências explícitas a sexo.

No início, achei que se tratava de fake news. Como assim? Anitta no Museu da Língua Portuguesa?! Não pode ser! Tinha que ser falso! — Olha o preconceito aí de novo! — Em seguida, entretanto, decidi me informar e descobri que, sim, entre final de maio e início de junho, houve mesmo uma exposição dedicada à compositora no museu. Passado o choque inicial, pus-me a refletir sobre o assunto, até porque a amiga que o enviara me havia instigado a isso. Preciso fazer aqui uma pausa para, de novo, confessar que não conheço a obra de Anitta. Sim, já a ouvi, sei quem ela é, conheço, por alto, sua luta pelas mulheres e pela comunidade LGTBQIA+. Mas não saberia citar nem um único verso de um de seus sucessos. Isso me fez pensar que não tinha o direito de criticar, pois não conhecia a obra. Continuo não conhecendo muito, mas fui em busca de algumas respostas.

Primeiro, descobri que a compositora tem uma linguagem bastante peculiar. Até aprendi algumas expressões! “Joga pra Lua”, por exemplo, é uma forma de sugerir que alguém se entregue completamente. Algo como “Vai fundo”, em uma linguagem também coloquial, porém menos recente. Uma frase que parecia incomodar muito a autora do vídeo que mencionei também me chamou a atenção: “Olha bem pra mim, más perra que Rin Tin Tin”. É verdade que pode ser entendida, à primeira vista, apenas como mais uma referência sexual. Mas será que “Rin Tin Tin” estaria aí apenas para rimar? Talvez, mas não creio. Trata-se de um pastor alemão que foi adestrado por cinco anos para que aprendesse a se comportar como fosse mandado. Então, não seria uma espécie de revolta contra as regras de comportamento para mulheres? Afinal, podemos ler a frase de duas formas: sou mais (perra) do que ele, ou sou mais isso (perra) do que aquilo (Rin Tin Tin)... Além disso, é necessário admitir que há ritmo na frase, além da rima já constatada.

Também precisamos destacar que há outros compositores brasileiros de sucesso que poderiam ser protagonistas de uma exposição. E nada nos leva a crer que isso não venha a ocorrer em algum momento. Assim, voltamos à pergunta anterior: por que Anitta? Por dinheiro, talvez?

Não sejamos ingênuos de acreditar que o vil metal não tem nada a ver com isso, o que não é, por si só, um problema, desde que haja, além dele, um motivo mais nobre. Afinal, quem seria hipócrita a ponto de dizer que não quer ganhar dinheiro? Mas não é só isso, penso. Anitta faz um sucesso estrondoso no Brasil e no mundo, o que leva àquilo que chamei de motivo nobre: seu alcance. Já pensaram no número de pessoas que jamais colocariam os pés em um museu e podem ter sido atraídas para essa exposição, só por se tratar de Anitta? Isso as levou para dentro do museu, para refletir sobre a língua que usam no seu dia a dia de forma diferente. Imaginem o ganho cultural envolvido só nesse movimento!

Há, a meu ver, outra causa para não atirar pedras na exposição: não se trata de museu de literatura, mas de LÍNGUA. Quem pode negar que a língua falada no Brasil tem recebido grande influência do funk? Se é língua portuguesa, não pode ser desprezada só por não se tratar de variante de prestígio, por não ser a língua falada pela elite, essa mesma que ama Machado de Assis. Sim, eu o amo. Não, eu não ouço funk. Mas meu gosto pessoal não pode servir de baliza para um museu dedicado à língua, que não é só minha, nem só da jovem indignada no vídeo. É de todos os brasileiros e demais falantes do português, inclusive dos amantes do funk. Entendo a indignação da moça. Eu também me senti desconfortável em um primeiro momento. Entretanto, é preciso olhar além de nossas preferências, se lutamos por um mundo inclusivo. Que o preconceito não nos impeça de enxergar o que é necessário.



 
 

Escritoria - Soluções em Linguagens

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