top of page

Cem anos sem Kafka

  • Foto do escritor: Maria Célia Ribeiro
    Maria Célia Ribeiro
  • 3 de jun. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 17 de jun. de 2024



ree

03 de junho de 1924. Há exatos cem anos, o mundo perdia um de seus escritores mais importantes e mais celebrados: Franz Kafka, autor de maravilhas como A metamorfose e O processo, entre outras.

Logo pela manhã, li um texto no jornal que questionava o direito de Max Brod, o melhor amigo de Kafka, de publicar textos inéditos, diários e correspondências, que o autor tcheco pedira que fossem queimados. Teria o “herdeiro literário” o direito de descumprir um pedido explícito?

Afinal, quem é dono de uma obra literária? O público? O autor? Seu herdeiro? Essa é uma discussão bem complicada e para a qual não creio que haja uma resposta exata.

Precisamos lidar com os fatos. E o fato é que temos hoje um grande número de textos kafkianos, alguns até inconclusos, que nos brindam com a genialidade do autor e nos fazem refletir sobre assuntos que eram tema em seu tempo e agora, cem anos mais tarde, continuam a sê-lo.

O que isso nos conta a nosso respeito? Bem, entre outras coisas, diz-nos que, ao que tudo indica, apesar de todos os avanços tecnológicos, continuamos a lidar com os mesmos problemas, queixas, dúvidas e questões, embora, em alguns casos, tudo isso tenha se complexificado devido precisamente a esses avanços.

Um exemplo? Não faz muito tempo, vimos uma propaganda de veículo na TV em que Elis Regina, morta há mais de 40 anos, “contracenava” com a filha Maria Rita, que ainda era criança quando a mãe se foi. Isso foi possível graças à famosa “inteligência artificial” (IA), procedimento, tanto quanto se saiba, autorizado pela filha/herdeira da cantora.

Tudo isso criou uma imensa discussão: teria Maria Rita o direito de usar a imagem da mãe, que ela, sejamos honestos, mal conheceu, para fazer propaganda? Quando se pensa no histórico de Elis, a questão fica ainda mais complicada, uma vez que nos leva a pensar que ela não faria tal anúncio. Mas como podemos saber? A verdade é que nós mudamos dia a dia, revemos conceitos, repensamos certezas. Como podemos garantir que Elis Regina pensaria hoje do mesmo modo que pensava nos anos 1970 e 1980? Não podemos.

Assim como não podemos garantir que Kafka queria mesmo que seus textos fossem destruídos. Há estudiosos que dizem até que a vontade do autor era ser publicado e, uma vez que não tivera coragem de fazê-lo, deixou seus escritos nas mãos de quem sabia que o faria. Não é uma teoria de todo sem sentido. Afinal, Kafka e Brod eram muito amigos e um sabia o que o outro pensava a respeito daqueles textos. Certamente, Max Brod disse inúmeras vezes ao amigo que ele deveria levar sua obra a público. Isso significa que Franz Kafka sabia o “risco” que corria quando deixou tudo nas mãos de Brod.

Não podemos dizer o mesmo sobre Elis Regina e Maria Rita. Entretanto, a dúvida sobre o que pensaria a mãe sobre o que fez a filha permanece. Se nem a própria filha pode falar pela mãe (segundo os seus críticos), quem poderia? Outro filho? Um amigo? O ex-marido? Um conhecido? Não sei. Acho que ninguém pode saber.

Tudo isso até parece meio kafkiano, na verdade. Uma espécie de corrida entre gato e rato em que nunca se sabe quem ganhou e quem perdeu, ou o que é ganhar e perder nesse caso? É fato que Maria Rita ganhou dinheiro com o anúncio de veículo. Elis Regina perdeu? O quê? Ao ganhar dinheiro, a filha perdeu algo? Admiradores talvez? Será?

Nesse perde-ganha, o que me parece é que Max Brod foi o grande responsável para que todos nós, leitores, ganhássemos – e muito! – com a publicação dos textos do amigo. Kafka, segundo o artigo jornalístico, não queria ser exposto (não mesmo?) e por isso teria pedido a destruição de seus escritos. Brod o expôs por inteiro e, ainda segundo o artigo, ele o fez trazendo a público textos que Kafka não considerava à sua altura. O que posso dizer? Se Franz Kafka não considerava aqueles textos à sua altura, significa que ele era muito maior do que pensamos. Convenhamos, essa exposição é bem positiva! Se ele é esse gigante da literatura com textos abaixo de sua capacidade, imaginem o que não teria escrito se chegasse ao seu máximo potencial!

Voltando ao fato de que ele tratava, há cem anos, de temas que ainda nos tocam, do ponto de vista social, é preciso que reflitamos sobre o que temos a fazer como humanidade.

É verdade que a literatura clássica tem essa característica. Mas quando ela trata de sentimentos como amor, raiva, inveja, sabemos que isso constitui o ser humano mesmo... O que dizer de problemas sociais? Opressão, culpa, a dificuldade (ou impossibilidade mesmo) de acesso à lei? Não há nada que possamos fazer sobre isso?

Nesses cem anos sem Kafka e, ao mesmo tempo, com tanto Kafka na nossa sociedade, que possamos buscar caminhos para melhorar como pessoas e como sociedade.

 
 

Escritoria - Soluções em Linguagens

bottom of page