top of page

Jogo de esconde-mostra

  • Foto do escritor: Maria Célia Ribeiro
    Maria Célia Ribeiro
  • 22 de jul. de 2024
  • 5 min de leitura


ree

Vejo a reportagem sobre atores que se fazem passar por médicos para fazer propaganda de supostos medicamentos ou, como eles chamam, “suplementos”. Ao ser entrevistada, a atriz Fernanda Padilha afirma que, como toda atriz, não tem responsabilidade sobre os papeis que é contratada para interpretar. Ela “interpreta” médicas, farmacêutica e apresentadora de um inexistente programa sobre saúde, “Saúde em Foco”, entrevistando outro ator, Sidnei Oliveira, que se diz médico endocrinologista (o renomado Ricardo Bruno). E o que me causa maior indignação: existe um médico chamado Ricardo Vasconcellos Bruno, no Rio de Janeiro, com o mesmo número no CRM exibido na “entrevista”! Não se trata de endocrinologista; o verdadeiro Dr. Ricardo Bruno é ginecologista. Em sua “defesa”, o ator alegou que fora contatado para interpretar um “personagem simples” e que já se desvinculou do contratante e que, portanto, não vê motivos para ser citado na reportagem. Já o estúdio Harmony House, onde o “programa” foi gravado, limitou-se a informar que fora contatado por um homem de nome José. Sim, isso mesmo. É muito fácil encontrar o José que contratou o estúdio, uma vez que não há muitos no Brasil, não é mesmo? Não chama a atenção de vocês que o nome do contratante seja esse? Quem diria! Quem os contratou foi o José! “E agora, José?” Como localizar o responsável pelo embuste? Por sua vez, o Google, que veiculou os vídeos, respondeu aos jornalistas da seguinte maneira: “Quando identificamos uma violação de nossas políticas, agimos imediatamente suspendendo o anúncio e, se for o caso, bloqueando a conta do anunciante...”

Fui professora de Ensino Fundamental por mais de vinte anos. Será que, tendo adotado um livro didático com erros crassos e tendo permitido que meus alunos aprendessem “errado”, eu poderia alegar que não tenho nenhuma responsabilidade sobre o conteúdo do livro? “Procurem a editora e os autores do livro, ora essa!”, diria eu. E tudo bem? Claro que não. Entendo que a atriz quer proteger-se de problemas judiciais, entretanto, penso que o mínimo que precisamos fazer, ao assinar um contrato, é conhecer bem suas implicações. Ou não?

Temos acompanhado em telejornais notas de autoridades quando algo não sai muito bom... Se houve aumento no número de roubos e assaltos em uma determinada região, a Secretaria de Segurança Pública afirma que, só neste ano, foram presos milhares de assaltantes e que há policiamento na área. Bem, mas isso não diz o que se pretende fazer para resolver o problema, não é mesmo? O que diz, nas entrelinhas, é o seguinte: “já fizemos nosso trabalho, parem de reclamar que não vamos tomar nenhuma outra providência; deem-se por satisfeitos, pois poderia ser pior”.

Outro exemplo claro de uso das palavras para silenciar, ou pior, para dizer o seu contrário, é quando alguém é discriminado por raça, sexo ou religião em qualquer estabelecimento comercial. Nota: “repudiamos toda e qualquer forma de discriminação”. É mesmo? Se repudiam, por que não tomam providências? Por que esses absurdos continuam acontecendo, muitas vezes, nos mesmos estabelecimentos?

A própria declaração do Google, no caso dos atores, tem a única função de tentar eximir-se de qualquer responsabilidade e consequências jurídicas. Para eles, se há uma política da empresa e alguém a desrespeita, a culpa é desse alguém. Ou, o que me parece ainda mais perverso, do tolo que caiu no conto do vigário, em vez de avisar a empresa de que se tratava de violação de sua política...

Então é isso? Tudo a ferro e fogo? Ninguém pode cometer um erro, um engano? Claro que pode! Todos podemos! Voltando ao exemplo do livro didático, caso eu só percebesse o problema de conceito incorreto após a adoção do material, o ético a fazer seria informar a editora para que houvesse correção e, em sala de aula, avisar os alunos que aquele trecho deveria ser substituído por outro. Depois, caso os problemas fossem muitos, buscar outro material. Sempre me lembrando de desculpar-me com os alunos pelo erro e com a escola, se perceber que a adoção fora equivocada.

Dias atrás, houve um incidente, envolvendo o atual técnico da equipe masculina de futebol do Palmeiras, Abel Ferreira. Após mais uma vitória importante para o clube, o treinador respondeu a uma das perguntas, durante a coletiva, com a seguinte pérola: “não somos uma equipa de índios, sem organização”. Claro está o racismo estrutural por trás dessas palavras, aparentemente, para alguns, tão inocente. No imaginário de muitos, os indígenas são desorganizados, selvagens, preguiçosos... Ao perceber o erro (ou ao ser alertado dele), Abel veio a público e desculpou-se. Duas vezes. E não disse aquelas palavras ambíguas de sempre, “quem se sentiu ofendido, minha fala foi retirada de contexto, etc. etc.”. Não. Ele admitiu que errou e pediu desculpas por isso. Já é um bom caminho andado. Houve erro, mas depois houve coragem suficiente para admiti-lo, de desculpar-se por ele. Isso é diferente de dizer que não tem nada com isso, a culpa é do outro (seja por não ter denunciado o abuso, por usar sua imagem sem que soubesse para quê ou, ainda, por ter sido “mal interpretado”). Não importa: se errou, admita, assuma, peça desculpas, retrate-se e siga em frente de uma forma melhor.

Ainda falando sobre povos originários, recentemente, tivemos uma ótima notícia: a chegada do manto sagrado tupinambá ao Brasil, cedido pela Dinamarca. Não se sabe como o manto foi parar no país europeu, por isso, esse fato não é tratado como “devolução”, mas como “doação”. Seja como for, os tupinambás comemoram a chegada da relíquia, que, para eles, carrega toda a sua ancestralidade. A peça, que é feita de penas vermelhas de pássaros guarás e estava em poder dos dinamarqueses desde o século XVII, será exposta no Museu Nacional. O fato de a Dinamarca ter enviado o manto de volta ao Brasil já é, por si só, uma declaração de reconhecimento de um erro, que pode ter sido cometido até por outra nação, mas que o país reconheceu que precisava corrigir.

Ainda é uma vitória modesta, diante de tantas injustiças impostas a esses povos, no entanto, os dois acontecimentos mencionados acima apontam que houve desejo sincero de corrigir erros cometidos (no caso do manto, por pessoas que nem aqui estão mais). Assim, começamos a caminhar no rumo certo, não? Mais ético, pelo menos. Esperemos que essa jornada, embora de lutas, sim, seja também de muitas vitórias. Haverá erros de percurso, como no caso da fala inadequada do técnico português, contudo, se também houver correção da rota, vejo luz no fim do longo túnel. Admitir um erro não é fraqueza. Fraqueza é não o fazer quando se sabe que errou, tentar culpar outros. Se passarmos a usar as palavras para agir adequadamente, em vez de fugir de nossas responsabilidades, talvez, com algum esforço, possamos enxergar, ao final de um longo túnel de tropeços, enfim, a luz tênue da esperança.

 
 

Posts recentes

Ver tudo

Escritoria - Soluções em Linguagens

bottom of page